Review | The Killing of a Sacred Deer (2017)


Se eu tivesse que descrever este primeiro contacto com o trabalho do realizador grego Yorgos Lanthimos teria que o comparar ao impacto do parto no bebé e todo o subsequente choque físico que é para ele sair da sua zona de conforto para o cruel mundo real onde a primeira coisa que tem a fazer, e que é altamente esperado, é chorar.

Lamento senão me consigo expressar de uma forma mais poética mas Lanthimos deixou-me assoberbada e derrotada. Deixou-me também curiosa com os seus trabalhos anteriores. E vamos ser honestos: se ele consegue ter tamanho impacto numa pessoa, porque não procurar perceber se me consegue replicar aquilo que me fez sentir ao longo deste filme? E o que me fez sentir?, perguntam vocês. Incredulidade acima de tudo.

Vamos, então, desconstruir este The Killing of a Sacred Deer.



Na verdade, tal afigura-se uma tarefa com algum nível de complexidade. Se por um lado, Colin Farrel não consegue perceber muito bem o que se passa nem qual a mensagem da história (e ele é o protagonista!), por outro temos o diretor a defender a sua obra como um exemplo daquilo que gostaria de assistir enquanto espectador. Yorgos disse que não gosta de filmes onde se considera a audiência incapacitada para chegar às suas próprias conclusões. Assim, a sua obra regista-se como um quebra-cabeças no qual nós próprios saímos das salas de cinema a ter que ir fazer o nosso trabalhinho de casa. Assim, de forma muito humilde - e profissional! - esta vossa autora admite que o fez. Estamos perante a adaptação cinematográfica do conto grego Iphigenia in Aulis de Euripides, onde Iphigenia é oferecida como sacrifício pelo pai Agamemnon para satisfazer a deusa Artemis. Parece algo difícil de transpor para a tela mas Lanthimos faz um excelente trabalho e deixa até uma pista à explicação do filme numa das suas cenas (os mais atentos chegarão lá). O realizador é também responsável pelo guião, a par com o seu parceiro de escrita Efthymis Filippou, com o qual já colaborou anteriormente em The Lobster, Dogtooth Alps.

Colin Farrel é Steven Murphy, um cirurgião cardiovascular que vive feliz com a sua mulher Anna (Nicole Kidman) e os dois filhos, Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). Mas a narrativa tampouco começa por aqui. Antes de mais, a cena de abertura é a de uma cirurgia ao coração acompanhada da música mais imponente e depressiva que se possa imaginar. Ui! Não me ponham a falar da música. Yorgos sabe muito bem o que quer para a sua obra. Ao longo do filme, o suspense foi bastante manipulado pela escolha musical, quase levando-nos à loucura pela rápida penetração cerebral com efeito altamente ansiolítico.

Mas bom, continuando.

Rapidamente somos confrontados com Martin (Barry Keoghan) e a sua estranha relação com Steven. Mas estranho não seria a palavra para descrever apenas esta relação. Na verdade, a família Murphy é uma família visivelmente vazia e completamente dispersa nos afetos e nas emoções. Isso tem o seu aspeto de interessante e, claro, tudo pensado para o efeito pretendido. Os diálogos são superficiais e discorrem sobre pormenores inúteis ou com pouca relevância. Assim, analisando de fora, que natureza assume a relação de Steven e Martin? Chegamos lá numa cena muito intensa entre ambos: o cirurgião matou o pai de Martin. Deparamo-nos com o busílis da questão. Numa tentativa de o compensar, Steven começa a dedicar a sua atenção e tempo a pequenos encontros com o adolescente, mas ao final de seis meses deixa de se dedicar com o mesmo fervor. Coincidência ou não, começam a acontecer bizarrias médicas a Bob e depois a Kim. Martin explica-o de um modo bastante assertivo e, assim, a modos que o cirurgião está a colher o que plantou. Se ele matou um membro da sua família, então Steven terá que fazer o mesmo com a sua, numa espécie de vingança sob a justificação de uma pretensa justiça poética (e delirante, admitamos). Não se sabe de que forma Martin - neste caso a desempenhar o papel de Artemis - está relacionado com estes acontecimentos que assumem parâmetros sobrenaturais. Mas tal é provável que não seja o objetivo de Lanthimos.

Contudo, ao tocar neste ponto da vingança, também faz com que toque no da família e, curiosamente, se qualquer pai não hesitaria em sacrificar a sua vida pela dos filhos, incrivelmente surpreendente é constatar que Steven é um homem egoísta pois nem ele nunca pôs essa hipótese em questão. Anna, esposa e mãe, também não o faz apesar de demonstrar um lado maternal que a paternidade do marido não satisfaz. Ela é sem dúvida mais humana e preocupada, mas ao serem confrontados com a questão do sacrifício, nenhum dos dois salta para a linha de frente. Esquisito, certo?

Não vos quero adiantar muito mais. Felizmente, esta narrativa tão complexa é muitíssimo bem defendida por todo o elenco. Pessoalmente, nunca tinha dado grande crédito a Colin Farrel mas sem dúvida que este foi um valente abre olhos. Kidman também não nutre a minha maior simpatia mas foi com grande surpresa que constatei a sua força enquanto mulher. Keoghan é, para mim, a estrela do filme apresentando no seu papel, e de forma diametralmente oposta, uma racionalidade assustadora e um compromisso enorme para com a sua real loucura, uma necessidade construída para lidar com a sua própria trágica história de dor e perda.

Estamos perante um filme muito específico e muito pesado e, sobretudo, pensado para um certo tipo de público. Nem todos vão gostar. Nem todos vão perceber. Estabeleço aqui um paralelismo com Mother! de Darren Aronofsky pois é, de facto, uma obra muito característica. Eu, sem dúvida que gostei. Na verdade acho que o realizador define o seu próprio género o qual eu gosto muito e fiquei fã. Se tivesse que descrever em que moldes se faz este filme, diria que se trata de uma mistura de terror psicológico com mind-fuck, adicionando toques de ficção. É um filme incrivelmente minucioso e inteligente, não se deixando resumir ou rebaixar pelo o que o género de terror pede. Não cai em clichés e muito menos cai em facilitismos. O realizador não se contém nem teria que o fazer a menos que, sei lá, fosse o Lars Von Trier. Magistralmente concebido e gravado, The Killing of a Sacred Deer estreia a 4 de Janeiro de 2018 pelo que ainda terão que esperar para ver este peça, mas garanto-vos que valerá cada minuto de espera.


Nota final: 5/5

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